quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Sobre conceitos

Colóquio em recorte:

...e eu começo a ficar bolada: ele diz que eu sou perigosa, que tem medo de mim e ri. Ri como se nunca tivesse dado uma boa risada antes. Em mim, tudo grita:
Sinto que esse homem pode acabar com a minha vida se ele quiser, então eu já estou me preparando pra acabar com a dele primeiro!

- Talvez seja o exame crítico que se recusa a te abandonar.

Não é isso... Seria como uma cor básica onde outras várias se colocam por cima...assim mesmo! Aleatoriamente. Ao final fica algo sombrio, quase em chamas. Eu ardo, porra!

- Não há nada de desonesto nisso, ora...

Como diria Baudrillard: "não há obscenidade quando o sexo está no sexo e não em outro lugar".

sábado, 4 de outubro de 2008

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Tolices

Texto de origem hipnagógica.

Ainda ontem eram completos desconhecidos. Havia a voz, bela, discreta e sempre em tom médio. Sua fala era de sugestão íntima e sempre que podia fugia para os órgãos que a recebiam muito bem, obrigada. Aconselhavam a velha amiga e indicavam organicamente o melhor caminho quanto à ação nas relações com outros aparelhos fonadores. O fígado não merecia muito sua confiança porque aceitava de tudo, concordava com tudo, um típico maria-vai-com-todos, eu diria,embora fosse simpático e flácido – um fofo. O rim, coitado, esse sempre funcionou mal, vivia amargo, cheio de pedrinhas nos sapatos e filtrava mal as percepções do mundo externo. Vivia resmungando sempre porque o seu parceiro de várias absorções essenciais, o outro rim, o direito, o havia abandonado. A labuta em demasia o desanimava.
O coração...bom, esse eu nem gostaria de comentar, na verdade...ele socava torto, descompassado, tinha forma desfigurada e nunca apanhava. Era um torturador sádico, maliciosamente a enganava. Não que nossa heroína fosse tola e ingênua. Não,não,não. O coração era muito esperto, precisava dela para expor seus argumentos. Ele quem bombeava, entendem? Ele a influenciava em sua quietude. Mas isso é uma outra história. Os outros são outros, colegas, meros coadjuvantes que se contentavam com aparições aqui e acolá.
Voltemos aos fatos.
Outro desconhecido dessa drama patética é a bendita rouquidão. A voz reconheceu a dificuldade na própria pronúncia (pasmem!) e se apaixonou perdidamente. Perdida? Sim. Estavam voltando de uma viajem dentro do mesmo corpo. O destino encarregou-se de fazê-los sentar um ao lado do outro. Voz não sabia de onde vinha muito menos para onde iria. Uma única certeza: “eu vou”. Rouquidão era ereta, porte seguro, envolvente e racional, penso eu. Segura em suas questões. Um casal perfeito! Voz percebeu logo e ficou de cara, lucidamente envolvida pela música áspera que provinha da circulação sanguínea, sacolejando duas abstrações numa só substância física. Conversaram sobre a estranheza do ser humano, a oposição à alma e sobre suas participações dentro da linguagem. Uma delícia sussurrava a voz nos leucócitos envolvidos na defesa da rouquidão sem emitir ruídos. Sentia, a voz, falo dela , vontade de enfiar as mãos por dentro da órbita cor de safira do outro e se entranhar pelas retinas que mais lembravam o firmamento. Creio que rouquidão percebeu o encantamento da desconhecida, daí brincou com a possibilidade do citoplasma.
Os órgãos amigos imediatamente começaram com o burburinho. “Saia daí, sua besta! “Não se joga nesse olho vivo” “Esse furo é conhecido, amiga voz, e desse trecho vocal, o tema já lhe é sabido”
Rouquidão nem precisou de muito esforço porque o coração, lembram dele? Aquele filho-da-puta farofeiro e debochado? Precisou de uma frase para convence-la: “A linguagem é própria do indivíduo e você é qualquer coisa, menos muda”
Pronto! Quem mandou dar ouvidos para alguém que é puro músculo e mora numa cavidade dentro do tórax? E o pior: do lado esquerdo, meu deus!
Trocaram hemogramas e nunca mais se falaram.

Calma

Lá busquei sossego.
Singular(me)ente, era ele!
quem golpeava a própria espécie.
Estagnada, fitava.
Silencioso, não correspondia.
Fui delírio inerte,
vi tendões e constelações de frigideiras
na ponta de um astro calado,
único e efêmero.
Mas, meu verde raro foi pisoteado na areia
entre a fumaça numa mesa forte e dura,
onde todos colocam suas cartas sobre a mesa.
Ele ganhou o pecado
pela falta de esforço
e eu, a estrela cadente!

segunda-feira, 28 de julho de 2008

Mudar-se

Nunca fui boa em pedir o que desejava. Sempre cheguei metendo o pé na porta, fazendo barulho e mudando a cor dos móveis. Todo ambiente sofria alterações - nunca encontrei um universo que não pudesse ser invadido.

...mastudosempremuda...

Fica decretado que a partir desse instante eu não invado mais o mundinho de ninguém. Tudo permanecerá em sua medíocre ordem. Quem quiser, que tente me invadir.

Escapulário

Ela desejava simples. Simples mesmo, de fácil compreensão, tolo como flerte inesperado com o sabido, desprovido de conotações, natural conforme a própria acepção dada, que pudesse vestir sua condição, sua noção de tempo que era muito preto e branco e seco e exato. Seus sóbrios dias não eram atraentes, os minutos tornavam-se síntese de seu capricho, da tentativa experimentada: compor recortes cotidianos tornando-os sedutores. Nunca se interessou com paixão por nada, nem por ela mesma e, infelizmente, jamais alcançaria o incontestável: conjugar o verbo desejar é ato e efeito, é a própria sedução, há no desejo uma beleza misteriosa que só quem conjuga sem flexionar consegue versar. Sobre as outras exclamações, ela alcançaria, pois não era burra. Mas uma palavra lhe escapa, dança com tal volúpia sobre seus excetos que a fuga, despercebida por ela, dispensa demonstrações. Intensidade. Sua incapacidade mora aí, rasteja, entre o conflito de desejar sem qualidade de intenso inato, na inaptidão de sentir o sentimento. No máximo, ela desejava, sem desejo. Era desinformada de si, não sabia usar o corpo ao contrário empregando as vísceras a seu favor. Não que seja estúpida, apenas não possui inteligência emocional e desconhece a si mesma porque não existe a curiosidade. Dentro desse estado em que transita, transcende-se através do sexo casual, sem desdobramentos afetivos, já que nesse tipo de relação ela pode manipular a superficialidade de seus sentimentos sem transferir ao outro a mesma sensação. A transição da fase sólida para o vapor era sua dádiva e sua forte fraqueza. Nada era sublimado ou recalcado no Universo dela, só dela, sem permissão para invasores, para usurpadores do seu vão, e esses, de verdade, sempre muito enfadonhos e repetitivos. Às vezes, vai ao cinema sozinha, mas não que goste de filmes, esses se parecem com a realidade, são óbvios demais, e de óbvio basta sua própria existência. Na verdade, ela gosta de ser sozinha, sabe e sente que é isolada, gosta de praticar solidão, não saberia sustentar-se se não fosse dessa forma. Ninguém gosta de parecer solitário. Ela gosta. Muito. Sente-se invisível assim, observando pessoas que necessitam do torpe convívio com outras, desse banquete de figuras sem pausa, dessas representações expostas de queixas, de resíduos dos predadores de outrora. Como lidar com isso? Quando é invisível, é livre, desprendida desse fardo de estabelecer correspondência com o que é além dela. Mas essa liberdade ontem lhe custou o doce anonimato. Ela desejava simples, sentada no estofado dobradiço abaixo da janela e olhava o relógio canalha sobre a cômoda voltada para leste marcando três e meia da tarde. No rádio cúmplice tocava “O Quereres” na voz de Maria Bethânia. Decerto que as paredes brancas, feridas por resquícios de pregos, onde buracos sinuosamente distribuídos concebiam uma tela imaginária, estancavam seu espírito. A promessa de fechá-los com pasta de dente era lembrada pela luz do sol daquela tarde, iluminando parte do assoalho onde um gato se espreguiçava. Sobre a mesma cômoda o porta-retrato em madeira talhada sem foto. O animal esperto se levantou da moleza bocejando e ela resolveu sair de casa, crendo que o prazer, que sempre surge de fora, emergiria em códigos nas esquinas do bairro. O dia estava igual aos outros daquele mês, céu azul, nuvem alguma. Enquanto esperava pelo bonde, alisava os cabelos úmidos que ficavam mais ásperos a cada novo dia, pois paciência e sabor para penteá-los ficaram perdidos, enfiados no passado. Olhou para suas mãos que estranhamente tinham um tom pouco mais escuro que o resto do corpo. Isso, porém, não incomodava, achava vantajoso de alguma forma, duas em uma, a divisão colorida em única obra. O bonde chegou e nele havia algumas pessoas já sentadas. Levantou as laterais da longa saia, subiu no bonde e sentou-se no último banco vazio. Contou cinco pessoas, com ela seis. Seis é um bom número, simpático, pensava. No instante em que o veículo elétrico saía, um rapaz saltou para dentro dele despontando instantaneamente do limite que havia entre ela e mundo, separando da soleira seu brando ambiente. Ele quase caiu ao subir e estava ofegante. Agora tem sete. Sete é o dia do meu aniversário. Péssimo número. O rapaz sentou-se ao lado dela. Pelo vão do lado esquerdo dos óculos escuros ela olhou para aquele jovem corpulento, rosto bronzeado, cabelos lisos e negros sem deixá-lo notar que ela o estudava. Provavelmente ele era uma tentativa de caricatura, um rascunho mal feito de cartunista qualquer, pensou ela. A testa dele suava, a roupa de aparência gasta: calça de brim preta, blusa listrada de mangas curtas e delas cresciam um odor particular, um cheiro batido, socado de angústia indefinida. Afastou-se suavemente escorregando no banco para o lado direito não dando impressão que realmente se afastava dele. Examinava aquele sapato usado, indigno, em contraste a sua adequada sandália de tiras sobre os pés delicados. Graciosamente levou as mãos à bolsa no intuito discreto de tirar uma foto, um registro daquela oposição de modos, de virtudes. Nesse momento, os olhos, que até então prescreviam a imagem dos calçados, subiram e se depararam com os dele. Há quanto tempo ele estava a julgá-la com os olhos? A testa suada, agora estava enrugada, a expressão a examinava e condenava sem piedade ou possibilidade de abertura para defesa. Tirou as mãos de dentro da bolsa e as pôs sobre o joelho a olhar para dentro de si mesma quando ele perguntou enxutamente se ela estava bem. Ela o ignorou virando a cabeça e metade do tronco para o outro lado. Isso porque aquela frase, naquele tom e com aquelas palavras soaram como uma bofetada na orelha zunindo dentro da cabeça num círculo que ela sabia exatamente onde começava e onde terminava. Não satisfeito com o descaso a sua pergunta, ele repetiu num tom mais intimidador: “Você está bem, gostosa?” Aquela frase realmente incomodou, contudo ela permaneceu a olhar para o outro lado e pensou seriamente em empurrá-lo para fora do bonde. Que ser desagradável e inconveniente! Porque não me deixa em paz? Cogitava. Nesse instante, com urgência, ele a puxou pelos cabelos com as duas mãos arrastando-a para junto dele e sussurrou raivosamente dentro do seu ouvido: “Sua vagabunda, na hora de me chupar você gosta, né?! Agora finge que não me conhece?” A brusca ação fez seus óculos escuros caírem no piso e deslizando perdiam a graça até morrerem no paralelepípedo fosco. Ela tentou se desvencilhar dele numa luta injusta, quando ele gritou: “Sua vagabunda, é isso que você é, uma vagabunda”. Todos os passageiros do bonde olharam para trás. Com muito esforço, pois sua cabeça estava inclinada sobre ele e metade do corpo ainda apoiado no assento, ela começou a aplicar arranhões pelo braço do homem tentando escapar da captura, conseguindo cravar as unhas no peito dele arrebentando um escapulário que ele tinha pendurado sobre o pescoço. Com isso ele a soltou e ela ainda atordoada viu um chumaço do seu cabelo entre os dedos dele. Descabelada e com parte da camiseta branca rasgada, ela levantou e só então pôde gritar também: Você está louco? Eu nem te conheço. Você deve estar me confundindo com alguém. Situação singular para descobrir o som do próprio grito, mas a voz nunca foi o melhor canal para sua aflição, a audição seletiva pôde agora perceber o que vem de fora, o corpo vacilava em meio ao nervosismo e parte do seio esquerdo estava à mostra. Ele estava tão enfurecido que mordia os lábios com violência e no canto da boca a ira espumava, os olhos eram de um felino hábil pronto para o ataque, a respiração ansiosa fazia suas narinas dilatarem num movimento agitado de compasso binário. Ela, perturbada, ainda se afastava quando o braço direito dele voou para trás buscando todo ar que pudesse juntar com a mão aberta, voltando com o ímpeto consistente colhido no caminho e explodindo seu rosto em cheio. O corpo dela queimou, a face latejava, pulsava, bombeando calor e fragilidade para os outros órgãos. O homem continuava a gritar: “Não reclama não, sua puta, eu sei que você gosta de apanhar”. E caminhando com segurança, chutou a bolsa dela que estava sobre chão do bonde, oferecendo uma trágica viagem aérea ao objeto, que expulsava no trajeto seu conteúdo: máquina fotográfica, batom, agenda, chave de casa, anotações corriqueiras, carteira, as peças moviam-se desenhando no espaço um triste vulto geométrico antes de se desfazerem em porções desnecessárias no solo, ao mesmo tempo em que ele dizia num tom médio passando a mão no rosto sombrio: “Caralho, tu roubou a minha alma, sua filha da puta.” Começou uma caça entre os bancos do veículo em movimento. Ela saltou entre os assentos vazados de madeira, com o rapaz a persegui-la. Pediu ajuda, socorro aos passageiros que se contorciam sentados para não serem pisoteados por ela ou pelo homem. Alguns até se levantaram sem entender o que acontecia. Suas súplicas eram estéreis. Ela gritava para que alguém acudisse, ajudasse, gritou para o maquinista, gritou para que ele parasse, gritou para as pessoas que caminhavam na rua e logo paravam para assistir a sua desgraça, gritou para que o rapaz parasse, gritou que não o conhecia que era um engano, gritou para que ele parasse, gritava se desviando do bárbaro faminto. Ninguém dizia uma palavra. Todos apenas observavam. O operador do bonde continuava o trajeto olhando de tempos em tempos para trás. Ela pensou em atirar-se dali, em lançar-se sem direção, mas não fez.

quarta-feira, 25 de junho de 2008

Poema

Poetas
Punhetas

sexta-feira, 20 de junho de 2008

Insatisfação

Você só come bem em dois lugares: na sua casa e em mim.
Cardápio variado, aquela, essa, outra, a mesma...Inovo!
Façamos um trato: toda prudência jogo fora,caso não fujas da mesa posta.
Em partes, há um banquete.
Sente-se! Sirva-se!
Nada de congelados, tudo é fresco, novo, colhido no pé da essência.
O combinado é prato feito.
No leito do apetite me deito, mas que não sobre uma palavra.
Como pagamento aceito silêncio, ao fio do ouvido.
Obrigada pela preferência.

Rodrigueando com Machado - Intimidades

Sou crosta
Outra escama
Quase líquida
Está tudo bem
Sou incivil e solene
Atribuo costumes e asas
Voa, vai...
Aquela aqui
Aerotransportando
Porção de terra
Me deixa tonta
Em cascata, paro:
Visto atitudes
Cubro o caule
Até tapume no busto
Negocio em abismo
Com mundos horas-mudo
Minha mente?
Ahh...Há!
Caio
Espero por mim
Há-pressa
(nos)
Aperto as dobradiças
Topa um rasante comigo?
Em cacos indivíduos?
Olha: “Tudo Mundo horas-fala”
Veja bem,
Excesso, falta
Essa é?
EU
Corpo, mente, escama, penas, patas
Caos!
EU
Em mim ela muito mente
Muito prazer!
Também sou uma farsa

terça-feira, 3 de junho de 2008

Cego de um olho

É saber disfarçar? Eu (dis)-fa-”r”(ço) , tapo, tombo, tomo, tendo, tundo, tinjo, topo tudo!
Acontece! - Distante me disse certa vez.

Ah...Luís, Luís...
Tudo em mim te responde:

Mais um segundo e me viro do avesso: água visivelsíssima, vivíssima, satisfação (?) satisfeita, sim, obrigada.
Sou 'aquela' de Camões, tenho por quem me mata a falsidade, ora pois...
Se ganha não é perde-se. Nunca!
Encontrá-lo sem dor e muito desatino, por favor, um querer: liberdade na origem, meu caro Luís!
Atinar-se no fogo sem servidão ou devoção é topar tudo, não é contrário, é verso sem batalha.
Ele me paga!
Eu? Apago.
Logo comparece outro até algum lugar, até a esquina, até a imoralidade, até o trilho, até o orgasmo...

Camões, perdoe-me: o caralho que você sabia amar!

Obviedades

O óbvio nunca me incomodou. Muito menos instigou. Sempre está ali ou mesmo aqui, saltando aos olhos com suas disposições de coisas e realidades. Exposto, acessível e módico. Nunca me trouxera problemas por ter natureza desvelada, aparente, sendo assim inquestionável. Acontece que certa noite ele me causou estranho desconforto. Com uma haste fina de metal imaginário, rebentando do não concretizado, aguçava-me a órbita, empurrando-me levemente de um lado ao outro sem tirar-me do eixo. Uma sensação estranha, uma reunião íntima e copiosa de vários manifestos surgindo da haste e me esfarelando a carne. Mas o óbvio não precisa de explicações! Senti-me estúpida e transparente. O mundo atravessava por mim sem notar que também sou feita de matéria. Sem notar que há muitas vidas e dispositivos latentes a cada inspiração de ar que entra nos meus pulmões. Como poderia o óbvio explicar-se a mim? Ora, ora...O evidente a dizer-me a que veio, a mostrar-se como circular como se eu nunca o tivesse notado. Perguntei-me silenciosamente durante a exposição: “ Porque tanta redundância? Porque o excesso daquilo que se basta, que tem suficiência própria?”. Talvez ele que sempre estivera ali ou mesmo aqui e por ser o próprio sentira a necessidade de ser o “dito”. Mas logo para mim? Logo para quem analisa cada espaçamento existente entre tudo que possui ou não consciência? Nessa noite, realmente, o óbvio me trouxe desconforto. Mestruei o enjôo daquela situação e pude percebê-lo escorrer lentamente pelas minhas pernas a querer tragar-me para dentro da névoa volúvel do lugar. Creio que o exposto percebeu a mim tão habitual quanto ele. Doce engano. Fiquei amarga e senti vontade de sair correndo, tropeçando pelos degraus e pude me ver jogando aquela cerveja quente nos olhos de todas aquelas pessoas previsíveis, com suas medíocres vidas prescritas, com suas expectativas prováveis e seus prazeres de pouco esforço. Elegantemente dei o último gole, olhei fundo no aspecto daquela desnecessidade, daquilo que se percebe por intuição genética e agradeci toda a explanação como boa dama que sou. Virei às costas e pensei: “ Pau no cu do óbvio”.

Prognóstico

- Então, o que eu tenho?
(Fala logo. Teu pigarro está me dando nojo)
- Nada de mais...
(Frescura)
- (...)
- (...)
- O remédio é muito caro?
(Minha conta de telefone vence hoje!)
- Não.
(O maridão paga, chuchu)
- O que eu tenho afinal? É só insônia?
(Anda, anda...quero ir embora)
- Cansaço. Você está cansada.
(Mais uma umbilicóide!)
- Tudo que eu não tenho é cansaço. Se não consigo dormir não pode ser só cansaço. Quando to cansada mesmo, desmaio.
(Meu deus, onde esse cara comprou o diploma?)
- Bom, a receita está aqui. Algumas vitaminas e o encaminhamento para um psicólogo.
- PSICÓLOGO?
- Você tem algum tipo de estafa mental, mas essa não é a minha especialidade.
- Eu só quero um remédio para dormir! Só isso!
- Veja bem, Mara...
- Meu nome é Marta!
- Isso, veja bem, Marta... fisicamente está tudo bem contigo. Algumas vitaminas irão ajudar, já que você não está se alimentando bem. Acho que você pode...veja bem, PODE ter algum tipo de cansaço mental. Fique calma, não deve ser nada.
- Veja bem doutor...Doutor?
- Pedro Paulo.
- Veja bem, DOUTOR Pedro Paulo: Como assim “fisicamente está tudo bem contigo”? Você não me pediu nenhum exame! Não viu minhas fezes, minha urina, nem um examezinho de sangue!
- Medi sua pressão e pelo...
- óóó...ele mediu minha pressão. E daí? Nunca tive problemas com ela. Meu problema é sono, entendeu? So-no. Não consigo dormir, não consigo fechar os olhos e entrar no nada absoluto! Nem sono, nem sonhos, nem pesadelos...nada!
- Veja bem, você fuma?
- Não! Mas você fuma?
- Sim...
- Pois não deveria, sabia? Geeente!!! Você é médico! Sabe dos males do cigarro, além do que seu pigarro é in-su-por-tá-vel. Não ensinam isso na faculdade?
- Mara, o doente...
- Marta!
- Sim, Marta! A paciente aqui é você. É de você que estamos falando...
- Claro, claro...sem dúvidas! Uma paciente que só teve a pressão medida.
- Bom, minha querida, você deve ter algum problema pessoal que está te impedindo de relaxar. Se você não quiser ir ao psicólogo, procure algum tipo de terapia alternativa, tome um chá antes de dormir, sei lá... Sou clínico geral, cuido de quem tem doenças de verdade, entendeu? Tchau! Até qualquer dia, passar bem.
- Entendi, entendi... eu quero meus 50 reais de volta.
- Hã?
- Eu paguei, não paguei? Você resolveu meu problema? Não! Quero meu dinheiro de volta.
- Minha senhora...
- Senhorita, por favor...
- Olha aqui, moça...
- QUERO MEU DINHEIRO DE VOLTA!
- Você não tem o direito de gritar comigo! Esse é um local sério de trabalho...
- E VOCÊ NÃO TEM O DIREITO DE ME ROUBAR, SEU LADRÃO! DEVOLVE MEU DINHEIRO!
- Tudo bem, tudo bem...calma, calma... eu devolvo o dinheiro. Sem problemas...e você vai embora, tudo bem?
- Obrigada.
- Cristiane, por favor, traga os 50 reais pagos pela paciente que está na minha sala.
- Está mais calma agora, Dona Marta?
- Não estou nervosa, ora...
- Tudo bem, tudo bem. Aqui está.
- Ué... aqui só tem 50 reais!
- Mas não foi esse o dinheiro que a senhora pagou?
- Senhorita, por favor!
- Quanto você pagou?
- Cinqüenta reais.
- Então, está tudo certo, não?!?
- E o dinheiro da minha passagem? Eu peguei dois ônibus para chegar aqui e você resolver meu problema. Problema resolvido? Não! Vou conseguir dormir? Não! Vou ter que pegar mais dois ônibus pra voltar pra casa...e nada de sono! Quero o dinheiro da passagem de volta!
- Ahhh... isso é alguma brincadeira?
- EU QUERO...
- Ta, ta, ta... só quero me ver livre da senhora! Toma aí, mais 5 reais.
- Humm. Obrigada, muito obrigada.
- Adeus, senhorita! Tchau!
(Maluca!)
- Tchau!
(Babaca!)

domingo, 1 de junho de 2008

Lua

O tempo é serpente. A ruína da duração alarga e condensa vestígios contínuos de desordem manhosa, roça na pele seu veneno fresco de ontem e condiciona sensações futuras. O tempo é nocivo, os pressupostos regulam. Cristina levantou-se da cadeira de balanço próxima à cama, pegou um cigarro na cartucheira de couro e tragando a si mesma prosseguiu. Quando se tem certeza que se estará preparada com pompa para o inesperado, a serpente dá o golpe. Você é a serpente, eu principio, você finda. Eu te falei que dói? Menti. Nenhuma palavra abstrata, nenhum sofrimento físico. Sentou-se novamente na cadeira de balanço, oscilando dentro do seu exame íntimo. Seria como sentir com exatidão o momento certo de dizer o que sinto? É irreal, assim é minha dor: irreal, por isso padeço. No apartamento de dois quartos, os móveis comprados em brechó combinavam com a melancolia dos últimos dias. Os estímulos dos quais me alimento provocam respostas particulares que introduzem a força uma expressão no meu cerne capaz de criar uma réplica minha, mais exata que o original. Eu sou apenas a idéia, a concepção do que nunca existiu, sou estreita, mas aprendi a experimentar-me na sucessão do outro mesmo que meu tempo fique torto. Preciso trocar o papel de parede desse quarto, essa cor é pastel demais e os convidados estão atrasados. Apagou o cigarro no cinzeiro de barro. Creio que meu vício sempre será o mesmo. Meu vício é ter vícios. Preciso deles para me sentir demasiadamente humana. Quantos anos tínhamos quando nos conhecemos, Lua? Doze? Treze? Cristina é alta, magra e sua beleza era fruto da morbidez que a acompanhava, da suavidade nas bordas que a aparavam. O sossego rebentava do olhar e era capaz de adormecer qualquer ambiente. Nunca te disse, roubei as oposições, decifro nossos códigos. Não piso mais em areias movediças, tornei-me sensata com você. Isso é bom? Lembro-me da nossa infância... Levantou-se novamente e a maciez a fez percorrer o taco do quarto, estancou na porta e alisando as paredes entrou no pequeno banheiro. Preciso beber mais água, minha urina está amarela demais. Sabe, hoje pensei em ter um filho, não sei! Deparo-me com meu egoísmo, logo. Será que uma pessoa também gostaria de nascer de dentro de mim? O que escrever numa folha em branco? Isso importa? Nada se encaixa nesse quebra-cabeça inútil. Gerar um parasita por nove meses, nove volumosos e nauseantes meses e ter a obrigação de me responsabilizar por tudo até sua enganosa maturidade? O tempo é serpente. A maternidade não cabe em mim, eu não caibo em mim, não encontro minha essência. Quantos anos tínhamos quando nos conhecemos? Tirou sua umidade com papel, sentiu-se tonta, agachou-se sobre o sanitário e lançou pela boca seus limites. Levantou-se com a força transparente de suas lágrimas. Deu descarga e agora outro líquido a pressionava desfigurando seu rosto. Lembro-me da sua mudança chegando numa noite quente. Os insetos davam as boas-vindas numa dança desengonçada no poste. Quantos anos tínhamos quando nos conhecemos, Lua? Doze? Treze? Voltou ao quarto e aos prantos contemplou a cena. Você está linda, sabia? Lua flutuava sobre lençóis rendados, a longa cachoeira encaracolada em contraste com o pálido tecido de linho tocava o chão, o sono profundo era embalado por um vestido azul celeste. Lembra do seu aniversário de quinze anos? Ascendeu outro cigarro. Sabe, eu me pergunto: qual hábito não é prejudicial? Estou com preguiça de viver. Habituei-me com a vida, com esse nada absoluto que a gente tenta criar propósito. Angustia-me não poder desistir. Posso pelo menos sentir preguiça, deus? Ah, deus, deus, deus...Que porra é essa? Eu tive festa de quinze anos, você quis trocar de nome, de Lucimar passou a chamar-se Lua. Assim como a própria porque tinha fases. Às vezes cheia, outras minguantes, sempre com brilho e dizia que até passava por eclipses. Eu te falei que dói? Engano meu. Estou desocupada de mim mesma, a sensação é de que abandonei-me sem carta de despedida. Perdi meu habite-se. Estou vaga, por isso sofro. Demorei a me acostumar com seu novo nome. Os convidados devem estar a caminho. Minha mãe me proibiu de falar com você, dizia que você era assanhada, má índole,lembra? Eu na janela ouvindo minha mãe falar, falar, falar sem dizer coisa alguma. Curioso isso, não?! Má índole... uma criança ainda. Quero a minha ingenuidade, tirando partido de tudo, de volta. Descobri que você nasceu pronta. Lembra aquele dia que você estava enfurecida com alguma coisa e não queria me contar? Eu fui embora zangada e você ficou sozinha no ponto de ônibus em frente à escola? Depois chegou à minha casa com a cara que sempre faz quando está aborrecida, a testa enrugada desenhando um til com as sobrancelhas, os olhos apertados e os lábios simulando a presença de chupeta. Gritou meu nome no portão e disse: “Cris, precisamos conversar”. Quantos anos tínhamos? Lembra? Eu pensei que pediria desculpas... Que nada! Sentou-se no chão ao lado da cama olhando a fumaça dissipando-se no ar. Você estava no ponto de ônibus e um carro parou um pouco mais a frente, um homem dentro dele ficou te olhando. Ele estava fazendo alguma coisa, mexia os braços e te olhava estranhamente. Eu sempre me deliciava com suas histórias. Curiosa que só, foi ver o que o homem estava fazendo. Quando viu que o homem estava se masturbando você perguntou se ele queria ajuda. Ah! Doida! É claro que ele saiu cantando o pneu do carro. Imagina... Encontrar um doente mais doente que você. É assustador! O que achou desse vestido que eu escolhi? Acho que você fica bonita com ele! E as rosas? São vermelhas e tem um cheiro bom, não acha? Eu te admiro. Estou um pouco tensa, há muito não damos uma festa aqui. Comprei pró-seco e frutas. Pedro me ligou e disse que traria bolas coloridas, disse para comprar azuis, sua cor preferida. Nossa! Sinto-me do lado avesso hoje, não quero beber, não quero festa, não quero música, não quero pensar, não quero sentir, quero ficar anestesiada pelos próximos vinte anos. Música? É isso... O que temos aqui? Sinto que hoje... Bom, Cartola? Não, não, Billie Holiday, é isso. Você sempre foi muito corajosa. A música começou a embalar o monodrama. E dizia sempre: Cris, você tem que se impor como mulher ou ficará igual a sua mãe. Acho que era por isso que minha mãe não gostava de você. Ela dizia que você era uma fedelha se achando gente! Que ainda levaria muita porrada na vida. Lembra? Eu te contava tudo e você dizia que minha mãe era mal comida, mal amada. Outro dia ouvi uma senhora comentando com outra na fila do supermercado que a vida era simples, a gente que complicava. Não consegui dormir naquele dia. Simples? Simples para quem está num grau mais baixo das reflexões sobre a vida. Às vezes quero tanto que não dou tempo para o alvo do meu querer também querer ser querido. Porque quando questiono me sinto vítima de variações inesgotáveis? Sempre achei você tão segura e certa que me sentia ínfima do seu lado. Uma fortaleza e eu um tapume de madeira oca. Está calor, não? Vou ligar o ar condicionado.
Hoje resolvi levantar o tapete e encarar o que está em baixo. Lembra? Você me dizia: Cris, levanta o tapete onde você esconde seus podres, inala essa coisa fétida porque ela é sua. Você é uma bruxa, acessava edificações que ninguém conseguiria chegar à porta. Era engraçado quando você fazia isso comigo. Os convidados estão demorando, não?! Eu não encarava as barreiras e numa enxurrada de frases a verdade na minha frente você jogava. Eu penso: E agora? O que eu faço com essa interjeição? Você diria: Agora, querida, se vira, resolve, dá seu jeito, mas seja forte, há uma amazona aí dentro, liberte-a. Estou ouvindo um barulho lá fora, é a campainha.
Correndo eufórica pelos corredores infinitos do apartamento, pelo olho mágico viu o amigo, ao abrir a porta a garganta secou, o choro estagnado gerando um grande sorriso e o abraço inevitável. Eu queria que o mundo acabasse nesse abraço! Disse ela. E depois? Os créditos do filme na tela do cinema? Cris, bem-vinda ao mundo dos seres humanos, onde há perdas e privações. Pedro também era um amigo de infância, homossexual enrustido e infeliz. Trouxe as bolas azuis, e quero cerveja, tem? Disse abrindo a geladeira grafitada. Cristina pegou dois copos no armário quando ele perguntou: Como você está? Eu? Viva! Você se drogou hoje? Que cara é essa? Estou entorpecida de vida e de morte, quer droga mais alucinógena que essa?

Ser. Será?

Veja bem, as sensações são circulares, viver é jogar e negociar com o mundo nunca foi meu forte. Lendo Machado aprendi que também uso máscaras, inevitavelmente! E Clarice nos ensina que o tédio pode ser um bom pretexto. Mas perceber que nunca há um propósito me desanima. “Uma infinidade de possibilidades”... de que adianta quando o cansaço me invade? Posso até brincar de ser outra como sempre fazemos todas, mas isso é puro comércio existencial e adaptação ao barato me dá asco. Difícil, muito difícil ter coerência... Ontem 'coloquei gelo, comi somente a sobremesa, fui só fissura, mudei o padrão do tecido e fingi fazer sentido'. Até que foi bom! Hoje faz frio que dói e gosto de monólogos. Depois de levemente alcoolizada sempre há um babaca pra dizer que é tudo muito bom, gostoso e fácil. Perguntei: “Já colocou gelo alguma vez?” Ele achava que eu argumentava sobre a forma da garrafa e sua utilidade, percebi de cara que esse viverá anestesiado por escolha mesmo. É o líquido, essa porra desse líquido que vai se adaptar ao que EU quiser, mas é uma porra de um líquido de cevada, eu pensava. Só pensava. Nem dá vontade de ir pra cama, pedi outra garrafa. Ora... então tudo é natureza? Estamos numa estrada e num passe de mágica...buuum! nasce uma flor aqui, e continuo caminhando, e uma pedra brota ali, e alguém morre, e outro nasce, e se vende uma empresa, e se descobre um novo planeta, e a terra já não é mais terra, e tudo é água pois chove muito, e sinto sede, e muda a nova ordem, e choro com prazer, e uma briga acontece acolá, e mais um nasce, e outro morre, e faço sexo de-li-ci-oso com um, e outro brocha, e ela chora por não ser amada, e prendem um traficante, e mudo o corte de cabelo, e elas correm de bicicleta e ele do amor... então, tudo é natureza? Não estou aqui pra massagear o ego de ninguém, e não me dêem explicações sobre as suposições, pois eu quero o que vive de verdade! Na mesa do bar ontem havia um italiano que olhava com uma curiosidade infantil, tentando ler nas risadas, nas expressões, nos gestos o contexto daquele bando barulhento de pombos. Ele nunca existiu naquela mesa! Ele era a natureza gritando sem voz. Senti compaixão por aquela pedra. Mentira. Quis sentir compaixão para dar mais humanidade a mim mesma.

Sem rótulos

Sabe, escrevo por inteiro.
Antes rejuntei os resquícios de uma noite que me talhou a carne, as lembranças... As não-palavras. Essas muitas palavras que ficaram inexecutáveis no único momento que gritaram por liberdade. Senti-me estranhamente feliz mesmo notando minha palavra emudecendo. Fui arremessada para fora de mim, para o mistério, fui obrigada a reler o ato de “encontrar-se”.
Pois é, eu nunca fui boa em traduzir o que sinto, embora seja através dessa mesma mudez que me reemposso quando, agora, digo que não consegui decodificar o estímulo que me lança para esta folha em branco.
Como justificar o ininteligível?
Isso tudo é uma tempestade de cérebro dilatada pelos sentidos e você verá que uma palavra mal tem a ver com outra.
(Preciso de um cigarro)
Olha para mim... Eu sou o que te escrevo (!) e sintonia fina é freqüência difícil de ajustar. Os argumentos são as horas e a exatidão com as quais me reordenei entre idas e vindas como lembrete-centelha recente e remota.
E acontece o seguinte: minha mão treme!
Esse conflito silencioso rebentando da necessidade de se manifestar me obriga a escrever (à parte isso, nada mais). Escrevo porque escrevo para você. Este manuscrito não tem propósito.
Tentei rabiscar estrofes e dar luz à poesia, dar luz à beleza sutil de quem faz versos como quem faz amor. Doce-tentativa-estéril. Não pude. A poesia só nasce quando se consegue dizer tudo dentro de uma pintura muda e delicada no sossego velado da arte. Eu tenho pressa, está tudo latente, assim poética e urgência são demais para uma só mulher. Preciso parir esse conjunto de frases trêmulas que você, sem querer, fecundou com uma enxurrada narrativa. Catei cada poeirinha de inspiração que você foi entornando pelo caminho, coloquei sobre as mãos, acariciei... E sopro em cima do que se segue.
Estou confusa.
Acho que escrever para você é falar demais, mesmo sem propósito.
Foda-se!
Sabe que gosto tem?
Engulo minha confusão e afirmo minha certeza: inevitável não te desejar. Conjugo os mesmos verbos que me causaram o espanto da sensação de agora. Nossa história não está mal resolvida, posto que os personagens sejam outros, o tema mais concreto, mas não menos impetuoso. Seriam registros de passagens? Tudo é novo, mas não menos instigante e o desejo pressupõe novas fronteiras, novas partilhas da natureza melódica que comungamos. O inexplorado nos sugere uma nova construção. Meus braços estão abertos, minhas mãos cheias de carinho e meus olhos transbordando de vontades.
Falo demais, não acha?
Sabe, nunca fui guiada apenas pela razão como você me disse certa vez, lembra? Você é a minha lembrança fortemente emocional, o desdobramento de reações intensas e inesperadas. Sou o reflexo do que você lê. Aqui, vida e morte, força e fraqueza, sensatez e loucura, são frutos do intuitivo-imediato. Fora de mim encontro abrigo. Dentro, fico a mercê do incêndio.
Entende que também estou em processo?
Estamos em processo.
Fato!
Você nos meandros de outra história que entendo e respeito, e eu com o pincelar de uma nova composição.
E acontece o seguinte: minha mão treme!
Não sei se te agradeço ou aborto o que (re)nasce dentro de mim!
Talvez o tempo te asfixie na minha memória, talvez ele seja generoso conosco!
Quem vai saber ?!?
Até lá, deixo o convite: pode entrar! Você é bem-vindo. Só não esqueça que a poesia é invisivelmente diluída nas vigas dos cômodos, não esqueça que arte é pintar, colorir nossas rubricas nos pilares, nas paredes, a cada novo dia. É dialético: mi casa, su casa. Não esqueça de fazer mimo nos móveis, embora meu metabolismo os tenha naturalmente lustrado com o espesso verniz da maturidade, eles são frágeis. Muita coisa mudou por aqui, mas o chão eu ainda limpo com a mesma essência e a confortável cama está com novos lençóis e com alguém querendo reinventar os significados do mundo ao seu lado. Está tudo bem diferente desde que você saiu. Suas coisas, suas marcas, estão bem guardadas nas melhores e mais altas prateleiras, mas tudo que não nos serve, a mudança levou.

Apoderando-me, em tempo: “fiquei apenas pensando que seu rosto parece com as minhas idéias”

(Preciso de mais um cigarro)

E tenho dito.

Humor

Havia dois dias que ela não aparecia em sua casa, embora sentisse que o mundo fosse seu verdadeiro lar. Seu endereço formal com número de CEP e tudo mais seriam para o caso de alguma outra alma tão perdida quanto à dela precisasse encontrá-la, eventualmente. O mundo era a sua casa, era o local destinado as suas reuniões recreativas e encontros casuais com outros astros e corpos celestes. Estivera poraí até então. Poraí é o seu local preferido dentro do mundo por que não a limita ou delimita e jamais a cobra satisfações quando ela parte. Em qualquer ambiente há um poraí e ela sempre se sentia melhor quando explorava a intimidade da ausência, a invisibilidade.
Depois de dois dias a viver aquilo que não se esconde, mas está por excelência encoberto, ela resolveu partir para seu endereço formal. Vá lá...todos precisam de um e ela não é tão especial assim. Ao chegar, notou que seus pertences, seus objetos pessoais, seus móveis estavam cobertos de uma poeira fina e úmida. Passou o dedo indicador direito pela substância e o levou até a boca. Pôde sentir um gosto nunca antes experimentado e tentou esterilmente buscar em sua memória algo semelhante, parecido. Não havia nada inventado com aquele caráter. Nesse instante ela foi tomada por uma indisposição de espírito incomensurável. Sentiu-se in-su-por-tá-vel. Que gosto era aquele? Que maldito pó era aquele que envenenava seu humor? De onde viera? Quis trocar de mente e de corpo e voltar à poraí. Não havia essa possibilidade, pois uma vez visto o efetivo deve-se encará-lo. Resolveu lavar aquela sujeira toda. “Sujeira ?”, refletia. Era apenas pó...pequenas partículas de algo sem brilho. Era insuportável sentir-se ela mesma e mais insuportável ver suas coisas cobertas por resquícios de algo, na verdade, ela não queria admitir. Pegou um balde com água, sabão e uma esponja. Pôs-se a limpar tudo...

O Furto

O pôr-do-sol é meu agora!
Só meu.

Destinatário

Rio de Janeiro, 19 de Dezembro de 2007.

Carta em III partes:

Parte I

Querido,

Ontem havia uma outra carta escrita e pronta para ser selada nos correios, mas devido a vossa formalidade, as frias e prontas frases, eu a rasguei e decidi por rabiscar esta. No que segue não haverá ‘pagação’ de qualquer natureza, muito menos direi que meus pensamentos, assim como meu corpo, umedecem quando você os invade antes do sono e durante o dia sem a devida permissão. Terminei a primeira leitura e iniciei a segunda com a caneta na mão. Encanta-me! Fui à faculdade hoje pela manhã e a tarde à exposição Lusa no CCBB. Percorri a história da arte portuguesa desde a pré-história até as grandes navegações. Cada dia mais me empolga as possibilidades de paralelos da arte com a literatura. Aqui, tudo permanece diferente: o ar cada vez mais pesado, o asfalto afetado pelo mormaço, as chuvas que nunca avisam, o noticiário mostrando a aprovação da transposição do rio São Francisco e as primeiras frases de um novo conto. Hoje, também ganhei um livro do Giotto de um amigo. Fiquei bem feliz e lembrei do girassol que imagino vivo no meu jardim.
Querido, volta logo!
Segunda fui ao centro da cidade fazer algumas compras para o natal e procurar pelo filho da puta do camelô que me vendeu um dvd vazio. O calor era suportável, mas a gritaria dos ambulantes não. Procurei pelo infeliz no mesmo ponto onde o encontrei no momento da compra. Não o encontrei, entretanto como levava o dvd vazio nas mãos, logo fui abordada por um de seus comparsas nessa máfia da pirataria. Expliquei o incidente e pedi gentilmente pela troca do produto. Você acredita que o cretino saiu e voltou alegando que a mídia estava arranhada? Mas como? Perguntei. O rapaz afirmou que como eu era ‘tranqüila’ faria a troca caso eu comprasse o filme Bee (desenho animado de uma abelhinha do mesmo criador de Shrek) Fiquei em silêncio e ele prosseguiu a negociação afirmando que além de ótima gravação, no dvd ainda estaria incluso mais 3 filmes. Sobre o filme infantil, que entrou em cartaz no cinema essa semana, um susto: a gravação é feita dentro de um cinema com um celular! O áudio é uma merda! Como essas pessoas conseguem ser tão desonestas? Querido, volta logo!  Enfim, tenho comido bastante salada e colocado algumas pendências de leitura em dia. Amanhã irei à uma festa no IFCS.
Um trechinho gostoso pra dividir com você segue abaixo.
Um beijo.

A ilusionista.

Documento sobre o homem lúcido:


“O homem lúcido sabe que a vida é uma carga tamanha de acontecimentos e emoções que ele nunca se entusiasma com ela, assim como ele nunca teme a morte. O homem lúcido sabe que o viver e o morrer são o mesmo em matéria de valor, posto que a vida contém tantos sofrimentos que a sua sensação não pode ser considerada um mal. O homem lúcido sabe que ele é o equilibrista na corda bamba da existência, ele sabe que por opção ou por acidente, é possível cair no abismo a qualquer momento – interrompendo a sessão do circo. Pode também o homem lúcido optar pela vida. Aí então, ele esgotará todas as suas possibilidades , ele passeará pelo seu campo aberto, pelas suas vielas floridas, ele saberá ver a beleza em tudo. Ele terá amantes, amigos, ideais, urdirá planos e os realizará. Resistirá aos infortúnios e até mesmo as doenças e, se atingido por algum desses emissários, saberá suporta-los com coragem e mansidão. E morrerá o homem lúcido de causas naturais e em idade avançada, cercado pelos seus filhos, pelos seus netos, que seguirão a sua magnífica aventura. Pairará, então, sobre a memória do homem lúcido uma áurea de bondade. Dirão: ‘ aquele amou muito, aquele fez muito bem as pessoas.’ A justa lei máxima da natureza obriga que a quantidade de acontecimentos maus na vida de um homem se iguale sempre a quantidade de acontecimentos favoráveis. O homem lúcido, porém, esse que optou pela vida, com consentimento dos deuses, ele tem o poder magno de alterar essa lei. Na sua vida, os acontecimentos favoráveis estarão sempre em maioria. Por que essa é uma cortesia que a natureza faz com os homens lúcidos.”

Rio de Janeiro, 21 de Dezembro de 2007.

Carta em III partes:

Parte II – Apenas uma via de interpretação

Querido,

Hoje deveria ter enviado carta de ontem. Desisti. Não quero a correspondência como subterfúgio para ausência, contudo a exploro em muitos aspectos. Creio ser uma forma de fazer uso de mim através de um outro eu: você. O meio, o canal? As palavras - mesmo na presença. Sei que não gosta desse meu lado, embora nunca tenha explicitado de fato. Ainda aprendo a fazer as coisas de outra maneira! Sabe, muitos gostos e desabores foram experimentados ao longo desses anos e como já disse Caetano: cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é. Uma vez quis me despir e mergulhar-me diante de outro, um mergulho honesto e inédito. Como se cria um elo, uma continuação digna com alguém? A frustração morreu afogada em alto mar logo depois da tentativa. Portanto, não espero por nada, não crio planos, não me permito a esse luxo de muitos – sou a real minoria. Muitas vezes me vejo amarrada junto a areia e mesmo já habituada às cordas meus (im)pulsos reclamam. Com desenvoltura consegui o saracoteio da leviandade. Paguei por ela e a tiro do armário sempre que necessário. Na verdade, agora só espero pela sua volta, nada além do seu braço como travesseiro. São 23:01h e observo, verdadeiramente, meu peso. Sinto-me bem, leve, tranqüila e disposta a curtir as quatro paredes desse cômodo. Entretanto, algumas pessoas, às vezes, nos sugam por necessidade, não acha? O carinho e zelo que tenho por você, e que atualmente fazem parte do espaço que ocupo em mim mesma, me impedem de entrar em miúdos. Certa vez um amigo disse que eu assusto os homens. Lembro-me que na ocasião citei a frase de Caetano, pois nada melhor veio à mente e a completei com meu bordão: “ Meu caro, sou uma dama”. Nem sei o motivo de falar tal frase quando oportuno. Meu brilho se apagou quando rompi o ventre de minha mãe e somente reacenderá quando eu morrer. Talvez, eu a repita para fingir que ainda o tenho.
Um amigo está se afundando na bebida por causa da ex-mulher e chorando, feito menino excluído da brincadeira, pediu com os olhos por um afago. Eu o amo muito e ele sofre. Dói. Acho que é por isso que te escrevo essas linhas, fiquei (re)mexida. Esbravejei, dei esporro, sermão de tia-chata e ao final colo. Ele foi embora e levou consigo parte da minha energia, pois tem feito merda atrás de merda. Sei que você não tem nada com isso, mas posso dividir? Decerto que com você só me sinto autorizada ao que é bom e saudável, mas posso dividir? Estou demasiadamente egoísta, né? Eu, eu,eu...! Estou muito primeira pessoa hoje. Poxa, entenderei perfeitamente caso não queira a partilha.
Sei lá... sei lá... sei lá... Essa frase é boa, não acha? Engloba 1 milhão de emoções mesmo sendo evasiva.
Minutos depois uma amiga ligou. Amiga muito querida, mas distante. Compreendi a obrigação de ajudá-la dentro dos meus limites. Queria conselhos sobre um carinha que está paquerando. Expus minha opinião e pronto, ela ficou satisfeita, agradecida e desligou sem perguntar se eu estava bem. Que existência de merda essa minha, penso. Querido, acho que estou carente.
Veja que curioso: está rolando uma festa na casa do meu vizinho. Tem uma bandinha tocando ao vivo e no instante que escrevo o vocalista repetia o refrão de uma música do Tim Maia. Começo a mudar de idéia. Nem é tão de merda assim minha existência...é bem pior. Depois disso, te pergunto: simultaneidade de acontecimentos ?

A próxima carta será mais alto-astral, ta?
Termino com o vocalista ao lado: ‘quem sabe ainda sou uma garotinha esperando o ônibus da escola sozinha?’
Ouviu? (rs)

Um beijo
A deprimida.


Rio de Janeiro, 01 de Janeiro de 2008.

Carta em III partes:

Parte III - Fim


Cara,

Hoje é o fim e conforme prometido segue toda animação como os fogos de ontem. Vale o bordão: ano novo, vida nova. Não volte, por favor! Fique aí, se apaixone perdidamente pela primeira mulher que lance meio sorriso para você. Case-se com ela e exija nada menos do que 3 filhos. Depois você pode morrer! Se preferir pode morrer agora: um, dois, três e já! Ah...vá! Não me peça explicações. Detesto dizer o óbvio (de novo). Sabe o que acontece? Não, não sou louca...você é louco por tentar entender. Esqueça-me! Tome banho de mar, Iemanjá cura problemas de amor, não sabia? Tudo bem, sobre o amor,né?! Nunca te amei, amei o amor até perceber que o encantamento ficou no passado, no ano passado. Esse ano tudo será diferente, logo também quero amar diferente. Não volte! Seu lugar aqui morreu. Na verdade, você estava me matando com a sua mornidão fraca e chata. Cansei de te reinventar forte e bacana. Renasci, meu bem. A piedade nunca fez parte do meu vocabulário, logo pena de você, nunca! Se te usei? Ah...pára! Levei muita festa para sua medíocre vidinha de homem correto! Vá à luta, chuchu. É preciso brigar, mas não comigo, oquei? Amigos? Não. Você é repetitivo, inseguro e gosto do vigor masculino. Além do que você trepa muito mal e eu fingi todas as vezes só para te fazer especial e tem mais: conheci um paulista na virada e comecei como deveria: sexo bom e generoso!
Compre roupas novas e mude de perfume, o cheiro é cansativo assim como seus papos. Deixe o cabelo crescer e faça a barba direitnho. Não tenha medo, pois nem feio direito você consegue ser. Breve, breve outra alma nobre (quem sabe?) pode se interessar pela sua evidente placidez pela vida.

A Franca.