domingo, 1 de junho de 2008
Lua
O tempo é serpente. A ruína da duração alarga e condensa vestígios contínuos de desordem manhosa, roça na pele seu veneno fresco de ontem e condiciona sensações futuras. O tempo é nocivo, os pressupostos regulam. Cristina levantou-se da cadeira de balanço próxima à cama, pegou um cigarro na cartucheira de couro e tragando a si mesma prosseguiu. Quando se tem certeza que se estará preparada com pompa para o inesperado, a serpente dá o golpe. Você é a serpente, eu principio, você finda. Eu te falei que dói? Menti. Nenhuma palavra abstrata, nenhum sofrimento físico. Sentou-se novamente na cadeira de balanço, oscilando dentro do seu exame íntimo. Seria como sentir com exatidão o momento certo de dizer o que sinto? É irreal, assim é minha dor: irreal, por isso padeço. No apartamento de dois quartos, os móveis comprados em brechó combinavam com a melancolia dos últimos dias. Os estímulos dos quais me alimento provocam respostas particulares que introduzem a força uma expressão no meu cerne capaz de criar uma réplica minha, mais exata que o original. Eu sou apenas a idéia, a concepção do que nunca existiu, sou estreita, mas aprendi a experimentar-me na sucessão do outro mesmo que meu tempo fique torto. Preciso trocar o papel de parede desse quarto, essa cor é pastel demais e os convidados estão atrasados. Apagou o cigarro no cinzeiro de barro. Creio que meu vício sempre será o mesmo. Meu vício é ter vícios. Preciso deles para me sentir demasiadamente humana. Quantos anos tínhamos quando nos conhecemos, Lua? Doze? Treze? Cristina é alta, magra e sua beleza era fruto da morbidez que a acompanhava, da suavidade nas bordas que a aparavam. O sossego rebentava do olhar e era capaz de adormecer qualquer ambiente. Nunca te disse, roubei as oposições, decifro nossos códigos. Não piso mais em areias movediças, tornei-me sensata com você. Isso é bom? Lembro-me da nossa infância... Levantou-se novamente e a maciez a fez percorrer o taco do quarto, estancou na porta e alisando as paredes entrou no pequeno banheiro. Preciso beber mais água, minha urina está amarela demais. Sabe, hoje pensei em ter um filho, não sei! Deparo-me com meu egoísmo, logo. Será que uma pessoa também gostaria de nascer de dentro de mim? O que escrever numa folha em branco? Isso importa? Nada se encaixa nesse quebra-cabeça inútil. Gerar um parasita por nove meses, nove volumosos e nauseantes meses e ter a obrigação de me responsabilizar por tudo até sua enganosa maturidade? O tempo é serpente. A maternidade não cabe em mim, eu não caibo em mim, não encontro minha essência. Quantos anos tínhamos quando nos conhecemos? Tirou sua umidade com papel, sentiu-se tonta, agachou-se sobre o sanitário e lançou pela boca seus limites. Levantou-se com a força transparente de suas lágrimas. Deu descarga e agora outro líquido a pressionava desfigurando seu rosto. Lembro-me da sua mudança chegando numa noite quente. Os insetos davam as boas-vindas numa dança desengonçada no poste. Quantos anos tínhamos quando nos conhecemos, Lua? Doze? Treze? Voltou ao quarto e aos prantos contemplou a cena. Você está linda, sabia? Lua flutuava sobre lençóis rendados, a longa cachoeira encaracolada em contraste com o pálido tecido de linho tocava o chão, o sono profundo era embalado por um vestido azul celeste. Lembra do seu aniversário de quinze anos? Ascendeu outro cigarro. Sabe, eu me pergunto: qual hábito não é prejudicial? Estou com preguiça de viver. Habituei-me com a vida, com esse nada absoluto que a gente tenta criar propósito. Angustia-me não poder desistir. Posso pelo menos sentir preguiça, deus? Ah, deus, deus, deus...Que porra é essa? Eu tive festa de quinze anos, você quis trocar de nome, de Lucimar passou a chamar-se Lua. Assim como a própria porque tinha fases. Às vezes cheia, outras minguantes, sempre com brilho e dizia que até passava por eclipses. Eu te falei que dói? Engano meu. Estou desocupada de mim mesma, a sensação é de que abandonei-me sem carta de despedida. Perdi meu habite-se. Estou vaga, por isso sofro. Demorei a me acostumar com seu novo nome. Os convidados devem estar a caminho. Minha mãe me proibiu de falar com você, dizia que você era assanhada, má índole,lembra? Eu na janela ouvindo minha mãe falar, falar, falar sem dizer coisa alguma. Curioso isso, não?! Má índole... uma criança ainda. Quero a minha ingenuidade, tirando partido de tudo, de volta. Descobri que você nasceu pronta. Lembra aquele dia que você estava enfurecida com alguma coisa e não queria me contar? Eu fui embora zangada e você ficou sozinha no ponto de ônibus em frente à escola? Depois chegou à minha casa com a cara que sempre faz quando está aborrecida, a testa enrugada desenhando um til com as sobrancelhas, os olhos apertados e os lábios simulando a presença de chupeta. Gritou meu nome no portão e disse: “Cris, precisamos conversar”. Quantos anos tínhamos? Lembra? Eu pensei que pediria desculpas... Que nada! Sentou-se no chão ao lado da cama olhando a fumaça dissipando-se no ar. Você estava no ponto de ônibus e um carro parou um pouco mais a frente, um homem dentro dele ficou te olhando. Ele estava fazendo alguma coisa, mexia os braços e te olhava estranhamente. Eu sempre me deliciava com suas histórias. Curiosa que só, foi ver o que o homem estava fazendo. Quando viu que o homem estava se masturbando você perguntou se ele queria ajuda. Ah! Doida! É claro que ele saiu cantando o pneu do carro. Imagina... Encontrar um doente mais doente que você. É assustador! O que achou desse vestido que eu escolhi? Acho que você fica bonita com ele! E as rosas? São vermelhas e tem um cheiro bom, não acha? Eu te admiro. Estou um pouco tensa, há muito não damos uma festa aqui. Comprei pró-seco e frutas. Pedro me ligou e disse que traria bolas coloridas, disse para comprar azuis, sua cor preferida. Nossa! Sinto-me do lado avesso hoje, não quero beber, não quero festa, não quero música, não quero pensar, não quero sentir, quero ficar anestesiada pelos próximos vinte anos. Música? É isso... O que temos aqui? Sinto que hoje... Bom, Cartola? Não, não, Billie Holiday, é isso. Você sempre foi muito corajosa. A música começou a embalar o monodrama. E dizia sempre: Cris, você tem que se impor como mulher ou ficará igual a sua mãe. Acho que era por isso que minha mãe não gostava de você. Ela dizia que você era uma fedelha se achando gente! Que ainda levaria muita porrada na vida. Lembra? Eu te contava tudo e você dizia que minha mãe era mal comida, mal amada. Outro dia ouvi uma senhora comentando com outra na fila do supermercado que a vida era simples, a gente que complicava. Não consegui dormir naquele dia. Simples? Simples para quem está num grau mais baixo das reflexões sobre a vida. Às vezes quero tanto que não dou tempo para o alvo do meu querer também querer ser querido. Porque quando questiono me sinto vítima de variações inesgotáveis? Sempre achei você tão segura e certa que me sentia ínfima do seu lado. Uma fortaleza e eu um tapume de madeira oca. Está calor, não? Vou ligar o ar condicionado.
Hoje resolvi levantar o tapete e encarar o que está em baixo. Lembra? Você me dizia: Cris, levanta o tapete onde você esconde seus podres, inala essa coisa fétida porque ela é sua. Você é uma bruxa, acessava edificações que ninguém conseguiria chegar à porta. Era engraçado quando você fazia isso comigo. Os convidados estão demorando, não?! Eu não encarava as barreiras e numa enxurrada de frases a verdade na minha frente você jogava. Eu penso: E agora? O que eu faço com essa interjeição? Você diria: Agora, querida, se vira, resolve, dá seu jeito, mas seja forte, há uma amazona aí dentro, liberte-a. Estou ouvindo um barulho lá fora, é a campainha.
Correndo eufórica pelos corredores infinitos do apartamento, pelo olho mágico viu o amigo, ao abrir a porta a garganta secou, o choro estagnado gerando um grande sorriso e o abraço inevitável. Eu queria que o mundo acabasse nesse abraço! Disse ela. E depois? Os créditos do filme na tela do cinema? Cris, bem-vinda ao mundo dos seres humanos, onde há perdas e privações. Pedro também era um amigo de infância, homossexual enrustido e infeliz. Trouxe as bolas azuis, e quero cerveja, tem? Disse abrindo a geladeira grafitada. Cristina pegou dois copos no armário quando ele perguntou: Como você está? Eu? Viva! Você se drogou hoje? Que cara é essa? Estou entorpecida de vida e de morte, quer droga mais alucinógena que essa?
Hoje resolvi levantar o tapete e encarar o que está em baixo. Lembra? Você me dizia: Cris, levanta o tapete onde você esconde seus podres, inala essa coisa fétida porque ela é sua. Você é uma bruxa, acessava edificações que ninguém conseguiria chegar à porta. Era engraçado quando você fazia isso comigo. Os convidados estão demorando, não?! Eu não encarava as barreiras e numa enxurrada de frases a verdade na minha frente você jogava. Eu penso: E agora? O que eu faço com essa interjeição? Você diria: Agora, querida, se vira, resolve, dá seu jeito, mas seja forte, há uma amazona aí dentro, liberte-a. Estou ouvindo um barulho lá fora, é a campainha.
Correndo eufórica pelos corredores infinitos do apartamento, pelo olho mágico viu o amigo, ao abrir a porta a garganta secou, o choro estagnado gerando um grande sorriso e o abraço inevitável. Eu queria que o mundo acabasse nesse abraço! Disse ela. E depois? Os créditos do filme na tela do cinema? Cris, bem-vinda ao mundo dos seres humanos, onde há perdas e privações. Pedro também era um amigo de infância, homossexual enrustido e infeliz. Trouxe as bolas azuis, e quero cerveja, tem? Disse abrindo a geladeira grafitada. Cristina pegou dois copos no armário quando ele perguntou: Como você está? Eu? Viva! Você se drogou hoje? Que cara é essa? Estou entorpecida de vida e de morte, quer droga mais alucinógena que essa?