quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Tolices

Texto de origem hipnagógica.

Ainda ontem eram completos desconhecidos. Havia a voz, bela, discreta e sempre em tom médio. Sua fala era de sugestão íntima e sempre que podia fugia para os órgãos que a recebiam muito bem, obrigada. Aconselhavam a velha amiga e indicavam organicamente o melhor caminho quanto à ação nas relações com outros aparelhos fonadores. O fígado não merecia muito sua confiança porque aceitava de tudo, concordava com tudo, um típico maria-vai-com-todos, eu diria,embora fosse simpático e flácido – um fofo. O rim, coitado, esse sempre funcionou mal, vivia amargo, cheio de pedrinhas nos sapatos e filtrava mal as percepções do mundo externo. Vivia resmungando sempre porque o seu parceiro de várias absorções essenciais, o outro rim, o direito, o havia abandonado. A labuta em demasia o desanimava.
O coração...bom, esse eu nem gostaria de comentar, na verdade...ele socava torto, descompassado, tinha forma desfigurada e nunca apanhava. Era um torturador sádico, maliciosamente a enganava. Não que nossa heroína fosse tola e ingênua. Não,não,não. O coração era muito esperto, precisava dela para expor seus argumentos. Ele quem bombeava, entendem? Ele a influenciava em sua quietude. Mas isso é uma outra história. Os outros são outros, colegas, meros coadjuvantes que se contentavam com aparições aqui e acolá.
Voltemos aos fatos.
Outro desconhecido dessa drama patética é a bendita rouquidão. A voz reconheceu a dificuldade na própria pronúncia (pasmem!) e se apaixonou perdidamente. Perdida? Sim. Estavam voltando de uma viajem dentro do mesmo corpo. O destino encarregou-se de fazê-los sentar um ao lado do outro. Voz não sabia de onde vinha muito menos para onde iria. Uma única certeza: “eu vou”. Rouquidão era ereta, porte seguro, envolvente e racional, penso eu. Segura em suas questões. Um casal perfeito! Voz percebeu logo e ficou de cara, lucidamente envolvida pela música áspera que provinha da circulação sanguínea, sacolejando duas abstrações numa só substância física. Conversaram sobre a estranheza do ser humano, a oposição à alma e sobre suas participações dentro da linguagem. Uma delícia sussurrava a voz nos leucócitos envolvidos na defesa da rouquidão sem emitir ruídos. Sentia, a voz, falo dela , vontade de enfiar as mãos por dentro da órbita cor de safira do outro e se entranhar pelas retinas que mais lembravam o firmamento. Creio que rouquidão percebeu o encantamento da desconhecida, daí brincou com a possibilidade do citoplasma.
Os órgãos amigos imediatamente começaram com o burburinho. “Saia daí, sua besta! “Não se joga nesse olho vivo” “Esse furo é conhecido, amiga voz, e desse trecho vocal, o tema já lhe é sabido”
Rouquidão nem precisou de muito esforço porque o coração, lembram dele? Aquele filho-da-puta farofeiro e debochado? Precisou de uma frase para convence-la: “A linguagem é própria do indivíduo e você é qualquer coisa, menos muda”
Pronto! Quem mandou dar ouvidos para alguém que é puro músculo e mora numa cavidade dentro do tórax? E o pior: do lado esquerdo, meu deus!
Trocaram hemogramas e nunca mais se falaram.

Calma

Lá busquei sossego.
Singular(me)ente, era ele!
quem golpeava a própria espécie.
Estagnada, fitava.
Silencioso, não correspondia.
Fui delírio inerte,
vi tendões e constelações de frigideiras
na ponta de um astro calado,
único e efêmero.
Mas, meu verde raro foi pisoteado na areia
entre a fumaça numa mesa forte e dura,
onde todos colocam suas cartas sobre a mesa.
Ele ganhou o pecado
pela falta de esforço
e eu, a estrela cadente!