segunda-feira, 28 de julho de 2008
Escapulário
Ela desejava simples. Simples mesmo, de fácil compreensão, tolo como flerte inesperado com o sabido, desprovido de conotações, natural conforme a própria acepção dada, que pudesse vestir sua condição, sua noção de tempo que era muito preto e branco e seco e exato. Seus sóbrios dias não eram atraentes, os minutos tornavam-se síntese de seu capricho, da tentativa experimentada: compor recortes cotidianos tornando-os sedutores. Nunca se interessou com paixão por nada, nem por ela mesma e, infelizmente, jamais alcançaria o incontestável: conjugar o verbo desejar é ato e efeito, é a própria sedução, há no desejo uma beleza misteriosa que só quem conjuga sem flexionar consegue versar. Sobre as outras exclamações, ela alcançaria, pois não era burra. Mas uma palavra lhe escapa, dança com tal volúpia sobre seus excetos que a fuga, despercebida por ela, dispensa demonstrações. Intensidade. Sua incapacidade mora aí, rasteja, entre o conflito de desejar sem qualidade de intenso inato, na inaptidão de sentir o sentimento. No máximo, ela desejava, sem desejo. Era desinformada de si, não sabia usar o corpo ao contrário empregando as vísceras a seu favor. Não que seja estúpida, apenas não possui inteligência emocional e desconhece a si mesma porque não existe a curiosidade. Dentro desse estado em que transita, transcende-se através do sexo casual, sem desdobramentos afetivos, já que nesse tipo de relação ela pode manipular a superficialidade de seus sentimentos sem transferir ao outro a mesma sensação. A transição da fase sólida para o vapor era sua dádiva e sua forte fraqueza. Nada era sublimado ou recalcado no Universo dela, só dela, sem permissão para invasores, para usurpadores do seu vão, e esses, de verdade, sempre muito enfadonhos e repetitivos. Às vezes, vai ao cinema sozinha, mas não que goste de filmes, esses se parecem com a realidade, são óbvios demais, e de óbvio basta sua própria existência. Na verdade, ela gosta de ser sozinha, sabe e sente que é isolada, gosta de praticar solidão, não saberia sustentar-se se não fosse dessa forma. Ninguém gosta de parecer solitário. Ela gosta. Muito. Sente-se invisível assim, observando pessoas que necessitam do torpe convívio com outras, desse banquete de figuras sem pausa, dessas representações expostas de queixas, de resíduos dos predadores de outrora. Como lidar com isso? Quando é invisível, é livre, desprendida desse fardo de estabelecer correspondência com o que é além dela. Mas essa liberdade ontem lhe custou o doce anonimato. Ela desejava simples, sentada no estofado dobradiço abaixo da janela e olhava o relógio canalha sobre a cômoda voltada para leste marcando três e meia da tarde. No rádio cúmplice tocava “O Quereres” na voz de Maria Bethânia. Decerto que as paredes brancas, feridas por resquícios de pregos, onde buracos sinuosamente distribuídos concebiam uma tela imaginária, estancavam seu espírito. A promessa de fechá-los com pasta de dente era lembrada pela luz do sol daquela tarde, iluminando parte do assoalho onde um gato se espreguiçava. Sobre a mesma cômoda o porta-retrato em madeira talhada sem foto. O animal esperto se levantou da moleza bocejando e ela resolveu sair de casa, crendo que o prazer, que sempre surge de fora, emergiria em códigos nas esquinas do bairro. O dia estava igual aos outros daquele mês, céu azul, nuvem alguma. Enquanto esperava pelo bonde, alisava os cabelos úmidos que ficavam mais ásperos a cada novo dia, pois paciência e sabor para penteá-los ficaram perdidos, enfiados no passado. Olhou para suas mãos que estranhamente tinham um tom pouco mais escuro que o resto do corpo. Isso, porém, não incomodava, achava vantajoso de alguma forma, duas em uma, a divisão colorida em única obra. O bonde chegou e nele havia algumas pessoas já sentadas. Levantou as laterais da longa saia, subiu no bonde e sentou-se no último banco vazio. Contou cinco pessoas, com ela seis. Seis é um bom número, simpático, pensava. No instante em que o veículo elétrico saía, um rapaz saltou para dentro dele despontando instantaneamente do limite que havia entre ela e mundo, separando da soleira seu brando ambiente. Ele quase caiu ao subir e estava ofegante. Agora tem sete. Sete é o dia do meu aniversário. Péssimo número. O rapaz sentou-se ao lado dela. Pelo vão do lado esquerdo dos óculos escuros ela olhou para aquele jovem corpulento, rosto bronzeado, cabelos lisos e negros sem deixá-lo notar que ela o estudava. Provavelmente ele era uma tentativa de caricatura, um rascunho mal feito de cartunista qualquer, pensou ela. A testa dele suava, a roupa de aparência gasta: calça de brim preta, blusa listrada de mangas curtas e delas cresciam um odor particular, um cheiro batido, socado de angústia indefinida. Afastou-se suavemente escorregando no banco para o lado direito não dando impressão que realmente se afastava dele. Examinava aquele sapato usado, indigno, em contraste a sua adequada sandália de tiras sobre os pés delicados. Graciosamente levou as mãos à bolsa no intuito discreto de tirar uma foto, um registro daquela oposição de modos, de virtudes. Nesse momento, os olhos, que até então prescreviam a imagem dos calçados, subiram e se depararam com os dele. Há quanto tempo ele estava a julgá-la com os olhos? A testa suada, agora estava enrugada, a expressão a examinava e condenava sem piedade ou possibilidade de abertura para defesa. Tirou as mãos de dentro da bolsa e as pôs sobre o joelho a olhar para dentro de si mesma quando ele perguntou enxutamente se ela estava bem. Ela o ignorou virando a cabeça e metade do tronco para o outro lado. Isso porque aquela frase, naquele tom e com aquelas palavras soaram como uma bofetada na orelha zunindo dentro da cabeça num círculo que ela sabia exatamente onde começava e onde terminava. Não satisfeito com o descaso a sua pergunta, ele repetiu num tom mais intimidador: “Você está bem, gostosa?” Aquela frase realmente incomodou, contudo ela permaneceu a olhar para o outro lado e pensou seriamente em empurrá-lo para fora do bonde. Que ser desagradável e inconveniente! Porque não me deixa em paz? Cogitava. Nesse instante, com urgência, ele a puxou pelos cabelos com as duas mãos arrastando-a para junto dele e sussurrou raivosamente dentro do seu ouvido: “Sua vagabunda, na hora de me chupar você gosta, né?! Agora finge que não me conhece?” A brusca ação fez seus óculos escuros caírem no piso e deslizando perdiam a graça até morrerem no paralelepípedo fosco. Ela tentou se desvencilhar dele numa luta injusta, quando ele gritou: “Sua vagabunda, é isso que você é, uma vagabunda”. Todos os passageiros do bonde olharam para trás. Com muito esforço, pois sua cabeça estava inclinada sobre ele e metade do corpo ainda apoiado no assento, ela começou a aplicar arranhões pelo braço do homem tentando escapar da captura, conseguindo cravar as unhas no peito dele arrebentando um escapulário que ele tinha pendurado sobre o pescoço. Com isso ele a soltou e ela ainda atordoada viu um chumaço do seu cabelo entre os dedos dele. Descabelada e com parte da camiseta branca rasgada, ela levantou e só então pôde gritar também: Você está louco? Eu nem te conheço. Você deve estar me confundindo com alguém. Situação singular para descobrir o som do próprio grito, mas a voz nunca foi o melhor canal para sua aflição, a audição seletiva pôde agora perceber o que vem de fora, o corpo vacilava em meio ao nervosismo e parte do seio esquerdo estava à mostra. Ele estava tão enfurecido que mordia os lábios com violência e no canto da boca a ira espumava, os olhos eram de um felino hábil pronto para o ataque, a respiração ansiosa fazia suas narinas dilatarem num movimento agitado de compasso binário. Ela, perturbada, ainda se afastava quando o braço direito dele voou para trás buscando todo ar que pudesse juntar com a mão aberta, voltando com o ímpeto consistente colhido no caminho e explodindo seu rosto em cheio. O corpo dela queimou, a face latejava, pulsava, bombeando calor e fragilidade para os outros órgãos. O homem continuava a gritar: “Não reclama não, sua puta, eu sei que você gosta de apanhar”. E caminhando com segurança, chutou a bolsa dela que estava sobre chão do bonde, oferecendo uma trágica viagem aérea ao objeto, que expulsava no trajeto seu conteúdo: máquina fotográfica, batom, agenda, chave de casa, anotações corriqueiras, carteira, as peças moviam-se desenhando no espaço um triste vulto geométrico antes de se desfazerem em porções desnecessárias no solo, ao mesmo tempo em que ele dizia num tom médio passando a mão no rosto sombrio: “Caralho, tu roubou a minha alma, sua filha da puta.” Começou uma caça entre os bancos do veículo em movimento. Ela saltou entre os assentos vazados de madeira, com o rapaz a persegui-la. Pediu ajuda, socorro aos passageiros que se contorciam sentados para não serem pisoteados por ela ou pelo homem. Alguns até se levantaram sem entender o que acontecia. Suas súplicas eram estéreis. Ela gritava para que alguém acudisse, ajudasse, gritou para o maquinista, gritou para que ele parasse, gritou para as pessoas que caminhavam na rua e logo paravam para assistir a sua desgraça, gritou para que o rapaz parasse, gritou que não o conhecia que era um engano, gritou para que ele parasse, gritava se desviando do bárbaro faminto. Ninguém dizia uma palavra. Todos apenas observavam. O operador do bonde continuava o trajeto olhando de tempos em tempos para trás. Ela pensou em atirar-se dali, em lançar-se sem direção, mas não fez.