quarta-feira, 8 de agosto de 2007

Pipas e balas


Seria apenas mais uma manhã tranqüila de Sábado para Fernando, não fosse um detalhe: uma pipa, ou melhor, a falta de uma pipa no céu.
12 de Fevereiro, Sábado, Fernando acorda pontualmente as 6:00h da manhã para mais um dia de labuta no supermercado da Zona Sul. Levantou-se e deparou com seu irmão na porta do quarto:
- E aí ? Tranqüilo? Diz o irmão de Fernando
- Quando é que você vai criar juízo?
- Pra que eu quero isso? Dá dinheiro essa porra?
- Jesus! Você está fedendo a bebida!
- “Eu bebo sim e estou vivendo...tem gente que não bebe e está morrendo, eu bebo sim..”.Porra, escravo! É sábado, mermão! Se você não gosta o pobrema é seu e não meu!
- Alguém precisa trabalhar nessa casa!
- Opa! Perái! Eu trabalho também nesse caralho dessa vida, merda!
- E desde quando ficar pra cima e pra baixo sentado numa moto é trabalho?
- Ah...não fode! E desde quando ficar entregando compras na casa desses babacas da Sul é trabalho? Tu é escravo mermo! Eu, pelo menos, faço o meu horário e não tenho um chefe paraíba pra me encher o saco!
O irmão visivelmente alcoolizado se joga na estreita cama de colchão duro, apoiada em tijolos e diz:
- Um dia eu ainda vou ter uma cama de verdade. Adormece.
Fernando olha para aquela cena e pensa em comprar uma máquina fotográfica. Mas, quanto custaria uma? Seria muito legal registrar aquele momento. Quem sabe vendendo as suas férias. A luz da manhã entrava pela janela e iluminava os pés de seu irmão. Somente os pés. O rosto permanecia na penumbra. Daria uma bela foto, pensou ele. Permaneceu olhando para a janela de madeira e estufou o peito. Fora adquirida no lixo de um prédio perto do supermercado. Não era nova, entretanto parecia nova. Dera muito trabalho levá-la para casa dentro do ônibus lotado, porém ele conseguiu. Sentia-se um vencedor, pois todos no trabalho disseram que ele não conseguiria. Ele conseguiu. Definitivamente sentiu-se um vencedor. Levou-a para casa pensando: “ Papai Noel chegou”.Lixou e pintou a janela como a uma obra de arte. E era. Era a sua obra de arte pintada de azul com respingos de suor.
Como num ritual, ele foi até a cozinha para preparar o café forte com pouco açúcar- tinha receio de ficar diabético. Desde os 13 anos ele tinha medo de ficar diabético. Como poderia trabalhar se fosse doente? Quem entregaria as compras da D. Marta se ele fosse diabético? Ela dava as melhores gorjetas da área. Dois reais em notas de um e sempre novinhas, cheirando a dinheiro vivo, recém parido do banco central. Fernando adorava o cheiro das notas novas. Ficava aguado, tinha vontade de comê-las, mastigá-las uma a uma, degustá-las. Às vezes, esquecia das outras entregas e ficava cheirando e passando o papel verde pelo rosto. Era como se elas tivessem vida também. Mesmo que fosse uma vida como a dele. Elas tinham circulação sangüínea e sistema nervoso central, sentia ele. Isso bastava para considerá-las com vida. Mesmo que fosse uma vida como a dele.
Bebeu num gole todo o café contido no copo trincado de extrato de tomate. Olhou para a rachadura do copo e pensou em jogá-lo fora. Não o fez. Talvez, depois que comprasse novos!
Como de hábito, antes de sair de casa, acionou o cronometro de seu relógio do Paraguai. Olhou pela janela e a rua ainda estava vazia. Fizera o trajeto até o ponto de ônibus em 13 minutos da última vez. Não sentiu vontade de correr nessa manhã.
Ouviu um burburinho vindo do lado de fora e avistou alguns foliões voltando para casa. Sentiu asco por aquelas pessoas. Como elas conseguiam se divertir com tão pouco? Diversão para ele era outra coisa. Diversão era ouvir os gringos conversando nas ruas da Zona Sul. Aquela língua diferente era fascinante, aqueles sons estranhos emitidos... Ele ria sozinho e às vezes gargalhava. Como elas conseguiam falar tão enrolado? O dia mais divertido foi quando viu um casal estrangeiro brigando. Fernando ficou tão vidrado que seguiu casal até eles entrarem num prédio. Esse dia ficara registrado em sua memória. Parecia assistir ao filme sem legenda. Como eles conseguiam entender um ao outro? Deliciava-se com aquilo.
Terminou de arrumar a camisa, abriu a porta da sala, fez o sinal da cruz e atravessou a pequenina varanda de cimento com os vasos abarrotados de espada de são jorge que ficavam no caminho. Parou na calçada e olhou para o céu azul brilhante, sem nuvens. Aquele céu o fez lembrar da sua infância. Nenhuma pipa no céu. Nostalgicamente se viu empinando as pipas como fazia antigamente. Naquela época, acordava cedinho e ficava horas a fio na rua, empinando pipas. “Se não tivesse que trabalhar hoje, eu empinaria pipa a manhã inteira”, pensou ele. Havia muito tempo que não avistava os moleques da área a brincar na frente de casa. Lembrou-se que não poderia permanecer ali muito tempo a contemplar o firmamento com suas nostalgias. “Tenho que ir! Não posso chegar atrasado!” Deu um único passo e caiu batendo fortemente o rosto no chão.

"Durante uma manhã tranquila, cinco pessoas foram feridas no sábado (12) em um tiroteio no conjunto de favelas do Alemão. O Comando da Polícia Militar afirmou que os traficantes do conjunto de favelas do Alemão perdem poder a cada dia, com os confrontos na região. A munição dos bandidos estaria reduzida, depois de tantos tiroteios. No 12º dia de ocupação, o policiamento continua reforçado.
Desde o início dos confrontos, já são 47 feridos e 14 mortos.
O funcionário de um supermercado, Fernando da Silva, 22 anos, foi atingido por uma bala perdida no interior da favela da Chatuba. Fernando foi baleado no abdômen na frente de casa, na Rua Tenente Luiz Dornelles. A Secretaria estadual de Saúde informou que o homem foi levado para o Hospital Getúlio Vargas na Penha. Ainda não há informações do estado de saúde da vítima."