Frederico senta-se, agora , ao lado de Rodrigo e diz:
- Quer conversar, cara?
Rodrigo rapidamente passa a mão esquerda pelo rosto vermelho tomado por um acanhamento incomensurável. Frederico acaba de invadir toda a sua privacidade ao vê-lo chorar.
- Eu quero ficar sozinho. Saia, por favor! Diz Rodrigo.
- Tudo bem, mas olha só: eu acho que você deveria tentar ser mais diplomata aqui
dentro. É só uma idéia que estou te dando, entende? Lá fora todos estão percebendo isso também.
Frederico está saindo do quarto. Ele sorri. Sinto que ele sai levando consigo a certeza que almejava desde o início. Ele sai com a certeza de que Rodrigo é e sempre será um sentimentalóide vestindo uma capa de mármore.
Nossa! Acho que o Rodrigo viu o sorriso nos lábios do Frederico. Ele está se levantando da cama e parece estar um pouco alterado. Ele passa pela cozinha e começa a gritar o nome do grande irmão e...
O telefone toca quebrando a descrição verbal da cena que Gustavo fazia. Dona Maria, como de hábito, começa a reclamar:
- Deixa tocar! Você não pode parar no melhor momento! Gustavo, volta aqui!
- Vózinha, preciso atender. Pode ser importante.
Gustavo Araújo Rodrigues tem 25 anos e um lindo bigode. É formado em Letras,
mas sua atual profissão é a de narrador de programas televisionados. Sua única cliente é sua avó. Dona Maria tem 77 anos, é cega e viciada em t.v. Seriados, novelas, minisséries, ela os adora, porém sua grande paixão são os reality shows. Ele ganha bem mais como narrador do que ganharia lecionando. Na verdade, ele nunca exerceu o magistério. Metade da aposentadoria da ex-funcionária pública pulava todo mês para as mãos do estranho rapaz. Ela o pagava com muita satisfação, sempre. Eu o chamo de estranho porque o jovem possui algumas excentricidades. Sua vida era cercada de mistério e todo o dinheiro recebido era gasto em gibis, cervejas e cigarros. Entretanto, o rapaz não fumava. Nunca fumou! Ele comprava a seda, o tabaco e confeccionava seus cigarros um a um sem nunca ter dado um trago sequer. O material jamais era reaproveitado, pois ele os jogava fora depois de prontos. Novamente comprava, confeccionava e jogava fora. Dizem que somente o cheiro da planta o agradava. Gustavo também não bebia cerveja, nunca bebeu. Os funcionários do supermercado já o conheciam pela quantidade de cerveja adquirida semanalmente. Era um ritual. Todo dia, antes de começar suas narrações noturnas, ele abria as latinhas quentes, degustava a espuma e derramava o líquido na pia da cozinha. Dizem que somente a textura da espuma o agradava. Outro ponto curioso são os gibis que o rapaz colecionava e nunca lia. Nosso jovem de bigodes cheios e negros nunca leu um gibi, mas sua coleção era vasta.
Contudo, Gustavo tinha um talento excepcional: inventar. Sua profissão poderia limitar-se somente na descrição daquilo que a senhora de cabelos vermelhos - todo mês eles eram coloridos pelo neto - não via. Ele ia além de maneira realmente brilhante, pois era necessário dar coerência ao que ele inventava com os diálogos que Dona Maria ouvia. Imagine recriar uma novela dentro de uma novela. Gustavo decidia quem era o mocinho ou o bandido em tempo real e os encaixes dos relatos com as conversas eram espetaculares. Sua avó se deliciava com tudo isso sem imaginar que o verdadeiro autor estava sentado bem ao seu lado.
Lembro-me perfeitamente a primeira vez que ouvi toda essa besteirada sobre a vida de Gustavo. Fiquei encantado! Todo o bairro conhecia a história sobre ele, porém ninguém tinha certeza se o rapaz realmente existiu. Alguns diziam que tudo não passava de boatos, outros que o bigodudo morava em Pelotas. Apenas uma verdade era unânime, a peculiaridade do jovem.
Hoje sei a importância do colecionador de gibis na minha vida. Foi com ele que eu comecei a meditar. Todo aquele assunto me empurrava as reflexões e as conclusões. Na minha humilde opinião, a esquisitice que o permeava era, na verdade, um desejo de ser um dos personagens que ele narrava. Meu melhor amigo, na época, chegou à outra conclusão: Gustavo era um impotente sexual frustado. Algo completamente absurdo e sem embasamento porque nunca se ouvira falar nada sobre sua vida íntima. Bom, talvez seja por isso mesmo que meu amigo explanava tal afirmação. Enfim, coisas de adolescentes.
- E aí ? O que você achou?
- Sinceramente?
- Você tem a obrigação de ser sincera!
- Acho que está uma merda! Faça outro.
- Essa é minha terceira tentativa.
- Quando você deve entregar esse texto ?
- Quarta-feira. Daqui a dois dias.
- Escreve outro. Esse está muito ruim.
- O que está muito ruim no meu texto?
- Ora, tudo! Toda essa história de um cara de bigode, todo esquisito que ganha a vida
narrando programas de tv para uma avó cega é completamente inverossímil. E para piorar você termina dizendo que o rapaz não passa de um broxa!
- Escreve outro!
- Como se isso fosse simples. Você está pensando o que? Que eu sou algum João
Ubaldo Ribeiro? João Cabral de Mello Neto? Sou apenas mais um João da Silva!
- Querido, você está nervoso demais! Precisa relaxar e deixar fluir.
- Oquéi! Alguma idéia brilhante?
- Meu bem, creio que só um anticiclone na sua mente seria capaz de te trazer de volta
a terra. Você viaja demais, João!
- Devo lhe informar que são muito reconfortante suas críticas.
- Porque não fazemos o seguinte: tomamos um banho, comemos uma pizza e depois
assistimos um filme. Que tal?
- Qual filme?
- Humm... “ Quero ser John Malkovich”, o que você acha?
- Acho que você está lúdica demais hoje.
O casal de namorados se abraça e os créditos do filme começam a aparecer na t.v. da
sala. Bruno levanta do sofá e ascende a luz. Os espectadores do seu, até então, inédito curta-metragem estão dormindo.