sábado, 5 de junho de 2010
Em cartaz: Copa do Mundo
A primeira vez que foi ao cinema ainda não sabia ler. A mãe narrava o filme de maneira ímpar, resumindo as falas, enquanto ela comia pipoca e imaginava o que havia atrás daquela tela mágica. O tal cinema, que hoje é uma Igreja Evangélica, ficava ao lado da loja onde sua mãe trabalhou durante anos. A loja era de Seu Tuficc, um turco muito generoso que deu praticamente todo enxoval quando sua irmã mais velha nasceu. Porém, quando ela nasceu, ele estava com muitas dívidas e não lhe deu porra nenhuma.
Tudo bem, Seu Tuficc. Filho do meio tem dessas coisas, eles sacam ainda na gestação. Quando o médico disse: “Parabéns, é uma menina”, a mãe chorou de frustração, pois queria um menino que chamaria de João Paulo.
Quando sua irmã mais nova nasceu Seu Tuficc já havia recuperado o fôlego financeiro, e deu, novamente, quase todo o enxoval da mais nova.
Tudo bem. Sem ressentimento. O universo sempre conspira contra os filhos do meio. Descanse em paz, seu Tuficc, descanse em paz!
Em tempo próprio, depois de muitas sessões da tarde comendo suspiro na frente da TV, vieram os pouquíssimos encontros na porta do cinema.O problema não era a raridade dos encontros, mas a ausência de beijos roubados durante o filme devido ao seu gosto peculiar. A proposta: “Que filme você quer assistir?” A resposta: “Qual filme de terror está em cartaz?” E a mesma cara de espanto deles...Tolos meninos! Ela era tímida. Como lhes segurar a mão sem que suas pernas tremessem e seus batimentos cardíacos aumentassem? Só mesmo com o pretexto do filme assustador, ora.
Certa vez, numa festinha, enquanto todos dançavam e ninguém notava sua ausência ou mesmo presença, ela saiu da casa para olhar a lua - “Nossa Senhora do Silêncio”, diria Álvaro de Campos. O menino mais bonitinho da escola se aproximou e perguntou o que ela estava fazendo. Respondeu que estava olhando a lua e que quando a mesma estava cheia ficava muito mais bonita que uma tela de cinema. Ele riu, voltou para a festa e falou para os outros garotos que ela era esquisita. Nesse mesmo dia, ela descobriu que 99,9% dos meninos bonitinhos eram idiotas. Bobagem, claro! Eram apenas 99,8%.
Sua infância e pré-adolescência foram muito solitárias. Contudo, ela não teria sido tão feliz se não tivesse sido exatamente como foi. Várias viagens com as irmãs nas férias, foram trocadas pelas estantes repletas de romances piegas na casa da tia. Com direito a caçar sapos no canal da rua de barro mal iluminada e a elogios da tia em relação ao seu interesse pelos 'livros velhos e empoeirados que só serviam para ocupar espaço' – era o que todos diziam a ela. Como foi feliz! Conseguia desfrutar do cinema que criava a partir do que lia, a seqüência de imagens, as histórias de amor eram recriadas e ela era a diretora de arte, fotografia, edição, trilha sonora e também a protagonista dos seus filmes. Acostumou-se a brincar sozinha.
Bom, a esquisita da família, da escola, conheceu o futebol, de fato, no dia em que foi pela primeira vez ao Maracanã, levada por um primo – ai dele se o pai soubesse. Estádio lotado, bumbo somado ao canto apaixonado da torcida do Flamengo, exaltação diante das bandeiras, o ritual antropológico de uma partida de futebol é uma experiência sensorial única na vida de uma menina, e foi ‘a sua’ catarse coletiva.
Enquanto as garotas da mesma idade colecionavam papéis-de-carta coloridos, ela acordava cedo todos os domingos e religiosamente comprava o Jornal dos Esportes – edições especiais do centenário do Flamengo.
Sua promissora carreira de cineasta de si mesma foi para escanteio e os romances piegas já eram coisas de “menininhas-cor-de-rosa”.
Mesmo com o gol de barriga de Renato Gaúcho e a vitória do Fluminense na final do Campeonato Carioca em 1995, não teve jeito, ficou apaixonada. Queria ir a todos os jogos, juntou dinheiro para comprar a camisa do time, implorava ao primo que a levasse sempre, sempre, sempre, mas a mentira poderia ser descoberta. Foi assim que aprendeu várias jogadas úteis: como mentir com inteligência e armar dribles contra as privações do botafoguense pai.
Pouco tempo depois descobriu que a paixão não era pelo Flamengo, nem pelo futebol, mas pela experiência vivida naquele dia. Os jogos pela TV não davam conta de reproduzir a sensação, eram chatos e mesmo com outras idas ao Maraca, ela queria mesmo “aquela” sensação. Logo a paixão foi perdendo a intensidade.
Ainda torce pelo Mengão, ainda tem a coleção do centenário, mas há muitos anos não vai aos jogos, não acompanha os campeonatos e muito menos sabe a escalação do time. Ela é como aqueles católicos que não vão à missa.
Olhando pelo retrovisor, percebe que a paixão de menina, como todas, passou. Ficou o amor pela linguagem cinematográfica e pela literatura.
Às vésperas da Copa do mundo o assunto está em cartaz, então bola pra frente: sem essa de que ano de copa junto com eleição é a maior burrice comungada pela maioria e que somente a minoria iluminada se dá conta disso. Até parece que se interessariam mais por política se fosse diferente.
Deixem-os gritar!
Sem essa de falar dos milhões da Copa em um país miserável como a África do Sul, dos milhões que o futebol maneja nos vários países miseráveis do mundo. O que esses que criticam, com um discurso bacaninha, fazem pela miséria e fome na África? No Brasil? No mundo? Bebem uísque doze anos ou coca-cola estupidamente gelada?
Ah! Façam-lhes o favor!
Sem essa de criticar a ignorância do brasileiro que se macaqueia de verde e amarelo para ver a seleção jogar esquecendo as mazelas do país e as merdas que o Senado vem fazendo. Sem essa de que brasileiro “tem mais é que se ferrar” porque o país inteiro pára por causa da Copa.
Vivemos num sistema capitalista e o futebol é o problema do sistema? Então, sem esse papo de intelectualóide hipócrita.
Deixem-os gritar!
Ela está com um “vai tomá no cu” entalado na garganta faz tempo, poxa!
Ela quer e precisa gritar por si, não pelo futebol, por acaso pelo Brasil, mas sem esse papo de patriotismo tupiniquim. A Copa será sua válvula de escape, a oportunidade para sua descompressão, a certeza de que ainda lhe resta alguma sanidade.
Não espera ver o futebol-arte que nos identifica em qualquer lugar do mundo, ela espera ver o feijão-com-arroz bem feito que trará a taça.
Ela quer bradar com raiva e xingar meRmo (no bom carioquês, claro)
Quer tomar um porre verde e amarelo e azul e branco e gritar abraçada aos amigos: “Brasil, porraaaaaa!”
Poderia ser Itália, Chile, Romênia, Argentina...Não, Argentina não, mas poderia ser qualquer outro país. Por acaso é o Brasil, nasceu aqui. Gosta disso.
Quer mandar o resto do mundo se fuder. Simples assim.
Precisa expurgar suas ansiedades, suas angústias, seu medos!
Deixem-na gritar!
Ela precisa, eu não.
"Eu queria tanto
Estar no escuro do meu quarto
À meia-noite, à meia luz
Sonhando!
Daria tudo, por meu mundo
E nada mais"
Tudo bem, Seu Tuficc. Filho do meio tem dessas coisas, eles sacam ainda na gestação. Quando o médico disse: “Parabéns, é uma menina”, a mãe chorou de frustração, pois queria um menino que chamaria de João Paulo.
Quando sua irmã mais nova nasceu Seu Tuficc já havia recuperado o fôlego financeiro, e deu, novamente, quase todo o enxoval da mais nova.
Tudo bem. Sem ressentimento. O universo sempre conspira contra os filhos do meio. Descanse em paz, seu Tuficc, descanse em paz!
Em tempo próprio, depois de muitas sessões da tarde comendo suspiro na frente da TV, vieram os pouquíssimos encontros na porta do cinema.O problema não era a raridade dos encontros, mas a ausência de beijos roubados durante o filme devido ao seu gosto peculiar. A proposta: “Que filme você quer assistir?” A resposta: “Qual filme de terror está em cartaz?” E a mesma cara de espanto deles...Tolos meninos! Ela era tímida. Como lhes segurar a mão sem que suas pernas tremessem e seus batimentos cardíacos aumentassem? Só mesmo com o pretexto do filme assustador, ora.
Certa vez, numa festinha, enquanto todos dançavam e ninguém notava sua ausência ou mesmo presença, ela saiu da casa para olhar a lua - “Nossa Senhora do Silêncio”, diria Álvaro de Campos. O menino mais bonitinho da escola se aproximou e perguntou o que ela estava fazendo. Respondeu que estava olhando a lua e que quando a mesma estava cheia ficava muito mais bonita que uma tela de cinema. Ele riu, voltou para a festa e falou para os outros garotos que ela era esquisita. Nesse mesmo dia, ela descobriu que 99,9% dos meninos bonitinhos eram idiotas. Bobagem, claro! Eram apenas 99,8%.
Sua infância e pré-adolescência foram muito solitárias. Contudo, ela não teria sido tão feliz se não tivesse sido exatamente como foi. Várias viagens com as irmãs nas férias, foram trocadas pelas estantes repletas de romances piegas na casa da tia. Com direito a caçar sapos no canal da rua de barro mal iluminada e a elogios da tia em relação ao seu interesse pelos 'livros velhos e empoeirados que só serviam para ocupar espaço' – era o que todos diziam a ela. Como foi feliz! Conseguia desfrutar do cinema que criava a partir do que lia, a seqüência de imagens, as histórias de amor eram recriadas e ela era a diretora de arte, fotografia, edição, trilha sonora e também a protagonista dos seus filmes. Acostumou-se a brincar sozinha.
Bom, a esquisita da família, da escola, conheceu o futebol, de fato, no dia em que foi pela primeira vez ao Maracanã, levada por um primo – ai dele se o pai soubesse. Estádio lotado, bumbo somado ao canto apaixonado da torcida do Flamengo, exaltação diante das bandeiras, o ritual antropológico de uma partida de futebol é uma experiência sensorial única na vida de uma menina, e foi ‘a sua’ catarse coletiva.
Enquanto as garotas da mesma idade colecionavam papéis-de-carta coloridos, ela acordava cedo todos os domingos e religiosamente comprava o Jornal dos Esportes – edições especiais do centenário do Flamengo.
Sua promissora carreira de cineasta de si mesma foi para escanteio e os romances piegas já eram coisas de “menininhas-cor-de-rosa”.
Mesmo com o gol de barriga de Renato Gaúcho e a vitória do Fluminense na final do Campeonato Carioca em 1995, não teve jeito, ficou apaixonada. Queria ir a todos os jogos, juntou dinheiro para comprar a camisa do time, implorava ao primo que a levasse sempre, sempre, sempre, mas a mentira poderia ser descoberta. Foi assim que aprendeu várias jogadas úteis: como mentir com inteligência e armar dribles contra as privações do botafoguense pai.
Pouco tempo depois descobriu que a paixão não era pelo Flamengo, nem pelo futebol, mas pela experiência vivida naquele dia. Os jogos pela TV não davam conta de reproduzir a sensação, eram chatos e mesmo com outras idas ao Maraca, ela queria mesmo “aquela” sensação. Logo a paixão foi perdendo a intensidade.
Ainda torce pelo Mengão, ainda tem a coleção do centenário, mas há muitos anos não vai aos jogos, não acompanha os campeonatos e muito menos sabe a escalação do time. Ela é como aqueles católicos que não vão à missa.
Olhando pelo retrovisor, percebe que a paixão de menina, como todas, passou. Ficou o amor pela linguagem cinematográfica e pela literatura.
Às vésperas da Copa do mundo o assunto está em cartaz, então bola pra frente: sem essa de que ano de copa junto com eleição é a maior burrice comungada pela maioria e que somente a minoria iluminada se dá conta disso. Até parece que se interessariam mais por política se fosse diferente.
Deixem-os gritar!
Sem essa de falar dos milhões da Copa em um país miserável como a África do Sul, dos milhões que o futebol maneja nos vários países miseráveis do mundo. O que esses que criticam, com um discurso bacaninha, fazem pela miséria e fome na África? No Brasil? No mundo? Bebem uísque doze anos ou coca-cola estupidamente gelada?
Ah! Façam-lhes o favor!
Sem essa de criticar a ignorância do brasileiro que se macaqueia de verde e amarelo para ver a seleção jogar esquecendo as mazelas do país e as merdas que o Senado vem fazendo. Sem essa de que brasileiro “tem mais é que se ferrar” porque o país inteiro pára por causa da Copa.
Vivemos num sistema capitalista e o futebol é o problema do sistema? Então, sem esse papo de intelectualóide hipócrita.
Deixem-os gritar!
Ela está com um “vai tomá no cu” entalado na garganta faz tempo, poxa!
Ela quer e precisa gritar por si, não pelo futebol, por acaso pelo Brasil, mas sem esse papo de patriotismo tupiniquim. A Copa será sua válvula de escape, a oportunidade para sua descompressão, a certeza de que ainda lhe resta alguma sanidade.
Não espera ver o futebol-arte que nos identifica em qualquer lugar do mundo, ela espera ver o feijão-com-arroz bem feito que trará a taça.
Ela quer bradar com raiva e xingar meRmo (no bom carioquês, claro)
Quer tomar um porre verde e amarelo e azul e branco e gritar abraçada aos amigos: “Brasil, porraaaaaa!”
Poderia ser Itália, Chile, Romênia, Argentina...Não, Argentina não, mas poderia ser qualquer outro país. Por acaso é o Brasil, nasceu aqui. Gosta disso.
Quer mandar o resto do mundo se fuder. Simples assim.
Precisa expurgar suas ansiedades, suas angústias, seu medos!
Deixem-na gritar!
Ela precisa, eu não.
"Eu queria tanto
Estar no escuro do meu quarto
À meia-noite, à meia luz
Sonhando!
Daria tudo, por meu mundo
E nada mais"